Sobre Franco Rotelli

FRANCO ROTELLI: CONTRIBUIÇÕES PARA REPENSAR O PARADIGMA PSIQUIÁTRICO

Cristina dos Santos Padilha1
Ramona de Moraes2


Este trabalho tem como objetivo resgatar aportes teóricos de Franco Rotelli que contribuíram para a construção do conceito de desinstitucionalização. Entende-se que a produção desse autor é imprescindível para problematizar a desinstitucionalização, já que coloca em questão o próprio paradigma psiquiátrico, legitimador de práticas de controle, coação e segregação.

Figura histórica da Reforma Psiquiátrica Italiana, a partir de sua experiência profissional em Gorizia, Rotelli vai idealizando uma perspectiva revolucionária da desinstitucionalização, que implica a reorientação dos elementos constitutivos da existência doente, não perdendo de vista sua relação com o social. A própria ciência tradicional é alvo de crítica em Rotelli, por estar sustentada pelo paradigma racionalista problema/solução, que transposto para a psiquiatria configura a díade doença mental/cura. Desconfirmando este paradigma, visto ser a cura da doença mental freqüentemente inalcançável, a psiquiatria acaba por cronificar a doença e reivindicar o manicômio.

Rotelli (In DELGADO et. al., 1991: 84) convida a pensar as relações entre técnica e política, explicitando a matriz de exclusão social que legitima a construção dos manicômios e que funda a Psiquiatria, delegando a essas instituições o controle dos grupos sociais e dos indivíduos que não correspondem às regras e aos cânones da ideologia dominante. A idéia é superar a lógica manicomial, pensando novas formas de lidar com uma existência em sofrimento, com todas as suas determinações materiais e relações sociais e culturais, o que implica na desmontagem de todas as instituições postas a serviço da exclusão e da segregação daqueles que
perturbam ou ameaçam a norma. Desinstitucionalizar, nesse sentido mais amplo, é desconstruir comportamentos e práticas postos a serviço da disciplinarização dos corpos, da rotulação e da estigmatização dos loucos ou, dito de outra forma, daqueles que são movidos por outras razões. Desisntitucionalizar é criar meios terapêuticos funcionais ao ser humano e ao incentivo de relações autênticas e espontâneas, desmontando os meios ditos terapêuticos que servem ao propósito da naturalização das desigualdades e da banalização da violência.

Para isso urge questionar nossas próprias instituições, nossas práticas e nossos engessamentos sociais, para que a Desinstitucionalização não fique restrita à Desospitalização e para que as novas modalidades de atendimento em Saúde Mental, no atual contexto político marcadamente neoliberal em que a Reforma Psiquiátrica vem sendo implementada - caracterizado por governos cuja atenção às questões sociais é escassa - não se transformem em uma extensão da lógica manicomial, onde os indivíduos são privados de participar “naquilo que deveria ser do seu máximo interesse, ou seja, a condução do seu tratamento.” (DELGADO et. al., 1991: 22)

O manicômio é a solução última encontrada quando não se pode mais conviver com a doença, sendo excluída e trancafiada na instituição total. Por isso a instituição que Rotelli coloca em questão não é o manicômio, mas a própria loucura, tal como instituída pela psiquiatria.

“[...] eu estou absolutamente convencido que, na fase concreta da superação cultural e social do manicômio, o Centro de Saúde Mental que funcione 24h seja a única forma intermediária de resposta que possa permitir o não retorno ao manicômio e a modificação de uma cultura das pessoas sobre o manicômio – o que é, ainda, historicamente e socialmente, o problema principal”. (Entrevista com Franco Rotelli in: DELGADO, 1991)

A desinstitucionalização italiana é um processo de transformação da instituição psiquiátrica desenvolvido ao longo de mais de 20 anos, que deixou marcas das micro relações terapêuticas às políticas psiquiátricas., culminando na promulgação da Lei 180 que restituiu a cidadania dos loucos. Em vez de desvendar a etiologia da doença para perseguir a normalidade, a nova proposta é remontar as determinações (normativas, científicas e institucionais) que dão forma e expressão à doença. A instituição é posta em questão e assume um significado mais amplo, referindo-se a mecanismos postos a serviço da doença. Desinstitucionalizar, então, é enfatizar mecanismos a serviço da invenção da saúde.

Os escritos de Rotelli trazem à tona a necessidade de novas instituições, à altura do novo objeto, que não é mais um objeto em equilíbrio, mas está, por definição (a existência-sofrimento de um corpo em relação com o corpo social), em estado de não equilíbrio: esta é a base da instituição inventada (e nunca dada).

Reconstituição de Sujeitos Cidadãos Eliminação de meios de contenção Restabelecimento da relação do indivíduo com o próprio corpo Direito ao uso de objetos pessoais Liberdade para falar, sair, se relacionar Ajuda para transformar o modo de viver e sentir o sofrimento Trabalho como direito e condição para melhorias, sendo realizado no ritmo do paciente e fora dos moldes do sistema produtivo.

Em tempos de Reforma Psiquiátrica no cenário brasileiro, culminando com o processo de desinstitucionalização que vem ocorrendo em muitos estados do país, Rotelli ajuda a pensar os serviços que pretendemos inventar para que o manicômio não sofra apenas mudança de nome e de lugar.


1 Mestranda em Saúde Pública – UFSC
2 Mestranda em Saúde Pública – UFSC



REFERÊNCIAS

DELGADO, J. (org., trad.) A Loucura na Sala de Jantar. Santos: Editora Resenha, 1991.

ROTELLI, F., et. al. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, F. (org.) Desinstitucionalização. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC, 2001.

ROTELLI, F. A instituição inventada. Revista Per la salute mentale/ For mental health" 1/88 – do “Centro Studi e Ricerche per la Salute Mentale della Regione Friuli Venezia Giulia. Disponível em: http://www.exclusion.net/images/pdf/47_bicoi_istituz.invent_po.pdf Acesso em: 15/03/09.